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MAIO 17 | Na Cama Com o Inimigo

Os casais mais sólidos assentam numa complementaridade que corresponde a uma desigualdade à partida impossível de colmatar – Holmes e Watson, ou as suas caricaturas crísticas Poirot e Hastings, são o protótipo dessa relação – em que um deles serve para realçar o outro. Em caso de igualdade na nulidade, a complementaridade reduzir-se-á a uma pura redundância – Dupont e Dupond. Raros são, no fim de contas, os casais em que cada um dos parceiros tem suficiente força e personalidade para prosseguir a sua obra original sem deixar de amparar o outro – ainda mais raros aqueles que conseguem trabalhar a quatro mãos até o contributo de cada um deixar de ser distintamente perceptível: no cinema, por vezes irmãos, Taviani ou Coen, excepcionalmente um casal Straub-Huillet –, Mary e Percy Shelley ou Sartre e Beauvoir são casos suficientemente singulares para a história reter os seus nomes. É preciso que haja simultaneamente uma diferença e uma concordância iniciais que permitirão percorrer lado a lado caminhos paralelos. E também, já que se trata de criar, um longo sofrimento acumulado a sublimar. A Manuela trouxe porventura ao JAS a dimensão manual e artesanal, a paciência, a atenção ao pormenor. O JAS trouxe porventura à Manuela a ambição, a visão, o desejo de inscrição na história. A Manuela introduziu porventura o JAS no círculo instituído da arte, com os seus marchands, as suas galerias, os seus circuitos, as suas internacionalizações, a sua feira das vaidades, a sua nota preta. O JAS comunicou porventura à Manuela o seu apetite, a sua febre de mexer em tudo, de criar depressa, a sua desenvoltura e a sua arrogância herdadas de um passado de boémia. Pois na verdade tudo parecia opô-los: a técnica, a factura, as temáticas, e até o tratamento da tal sede de amor que fez com que eles se encontrassem – a Manuela a coleccionar minuciosamente as mensagens de amor inscritas nas paredes da cidade, o JAS a pintar seres monstruosos que se agridem de todas as maneiras. Os traços comuns só aparecem em razão do número e da acumulação: carácter obsessivo que os leva a repetir os temas e as formas até à exaustão, dimensão simbólica que deixa entrever uma erótica da perda ou da insatisfação, marcas de dores caladas. Durante muito tempo, as peças da Manuela obedeceram ao princípio da reconstituição: os azulejos de papelão reproduziam os de faiança, segundo o princípio do trompe-l’œil ou dos pedaços de açúcar de mármore de Duchamp. Durante muito tempo, as telas do JAS obedeceram ao princípio da citação: Picasso ou Julião Sarmento, ou até Bosch, eram explicitamente convocados como modelos. As referências da Manuela pertenciam ao mundo, ao vivo, ao presente; as de JAS à pintura, ao passado, à história. A Manuela realizava uma difícil promoção do semi-industrial, do funcional, do popular, ou até do lixo – nem que fosse arrancando verdadeiros bocados de cartazes para os colar em falsos pedaços de paredes – ao mundo da arte, operando uma deslocação tanto das coisas como dos valores. O JAS afirmava a sua pertença ao universo das imagens, admitindo tão-só a intrusão de um real depurado, metamorfoseado, codificado. Ambos – Manuela de um modo mais assumido do que JAS – trabalhavam segundo o princípio da repetição, por séries. O seu encontro rebentou com as respectivas bolhas, inflectiu o percurso de uma e do outro. Ao correr do tempo, os casais mais antagónicos acabam por se parecer – Arpad Szenes e Helena Vieira da Silva, o meu vizinho e o seu cão –, não por as suas diferenças ontológicas terem desaparecido mas por se terem atenuado à medida que a influência recíproca foi introduzindo na obra de cada um elementos comuns aos dois. A Manuela sabia desde o princípio que a realidade é fragmentada, ou até mesmo fragmentária, e que uma cidade se constrói com diferentes paredes, e que uma parede é composta de azulejos distintos. O JAS pintava cenas, com corpos em acção. Aos poucos, os elementos corporais subliminares – as orelhas das paredes, ou até mesmo as suas vaginas – apareceram, tornaram-se visíveis, nas reconstruções minerais da Manuela. Em contrapartida, os corpos pintados pelo JAS desarticularam-se: um olho, uma mão bastam para evocar, encarnar, um corpo fantasmático, temido ou desejado. Faz parte da essência da relação amorosa magoar e tratar, talvez mesmo curar. A obra cruzada de Manuela e JAS está ainda no início. Esta exposição é pois um work in progress... Saguenail

COUCHER AVEC L’ENNEMI

Les couples les plus solides sont fondés sur une complémentarité qui recouvre une inégalité de départ irrattrapable – Holmes et Watson, ou leurs caricatures christiques Poirot et Hastings, en sont les prototypes – où l’un des deux sert de faire-valoir à l’autre. En cas d’égalité dans la nullité, la complémentarité se réduira à une pure redondance – Dupont et Dupond. Rares sont finalement les couples où chacun des partenaires a assez de force et de personnalité pour poursuivre son œuvre originale tout en épaulant l’autre – encore plus rares ceux qui parviennent à travailler à quatre mains jusqu’à ce que l’apport de chacun ne soit plus distinctement perceptible: au cinéma, parfois des frères, Taviani ou Coen, exceptionnellement un couple, Straub-Huillet –, Mary et Percy Shelley ou Sartre et Beauvoir sont des cas suffisamment singuliers pour que l’histoire retienne leurs noms. Il faut à la fois une différence et une concordance initiales qui permettront de parcourir côte à côte des chemins parallèles. Et aussi, puisqu’il s’agit de créer, une longue souffrance accumulée à sublimer. 

Manuela aura apporté à JAS la dimension manuelle et artisanale, la patience, l’attention au détail. JAS aura apporté à Manuela l’ambition, la démesure, la vision, le souci d’inscription dans l’histoire. Manuela aura introduit JAS dans le cercle institué de l’art, avec ses marchands, ses galeries, ses circuits, ses internationalisations, sa frime et son fric. JAS aura communiqué à Manuela son appétit, sa fièvre de toucher à tout, de créer vite, sa désinvolture et son arrogance héritées de son passé bohème. Car tout semblait les opposer: la technique, la facture, les thématiques, et jusqu’au traitement de cette soif d’amour qui les a fait se rencontrer: Manuela relevant minutieusement les messages amoureux inscrits sur les murs de la ville, JAS peignant des êtres monstrueux s’agressant de toutes les manières. Les traits communs n’apparaissent que par le nombre et l’accumulation: caractère obsessionnel qui leur fait répéter les thèmes et les formes jusqu’à l’exhaustion, dimension symbolique laissant entrevoir une érotique de la perte ou de l’insatisfaction, traces de douleurs tues. 

Longtemps, les pièces de Manuela ont obéi au principe de reconstitution: les azulejos de carton reproduisaient ceux de faïence, selon le principe du trompe-l’œil ou des morceaux de sucre en marbre de Duchamp. Longtemps, les toiles de JAS ont obéi au principe de citation: Picasso ou Julião Sarmiento, voire Bosch, étaient explicitement convoqués comme modèles. Les références de Manuela appartenaient au monde, au vivant, au présent; celles de JAS à la peinture, au passé, à l’histoire. Manuela réalisait une difficile promotion du semi-industriel, fonctionnel, populaire, voire du déchet – quitte à arracher de vrais morceaux d’affiches pour les recoller sur ses faux morceaux de murs –, au monde de l’art, opérait un déplacement, des choses comme des valeurs. JAS affirmait son appartenance à l’univers des images, n’admettant l’immixtion du réel qu’épuré, métamorphosé, codifié. Tous deux – Manuela de façon plus assumée que JAS – travaillaient selon le principe de répétition, par séries. Leur rencontre, faisant éclater leurs bulles respectives, infléchit leurs parcours. 

Avec le temps les couples les plus antagoniques finissent par se ressembler – Arpad Szenes et Helena Vieira da Silva, mon voisin et son chien –, non pas que les différences ontologiques aient disparu, mais elles ont été réduites à mesure que l’influence réciproque introduisait dans l’œuvre de chacun des éléments communs. Manuela savait dès le début que la réalité est fragmentée, si ce n’est fragmentaire, et qu’une ville est construite de nombreux murs différents et qu’un mur est composé d’azulejos distincts. JAS peignait des scènes, avec des corps en action. Peu à peu, les éléments corporels subliminaux – les oreilles des murs, voire leur vagin – sont apparus, visibles, dans les reconstructions minérales de Manuela. En revanche, les corps peints par JAS se sont disloqués: un œil, une main suffisent à évoquer, incarner, un corps fantasmatique, craint ou désiré. Il est dans l’essence du rapport amoureux de s’écorcher mais aussi de se panser, peut-être se guérir. L’œuvre croisée de Manuela et JAS en est à son commencement. Cette exposition est un work in progress.

Saguenail

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http://joaoalexandrinoakajas.com/ http://www.manuelapimentel.com/